Projeto de proibição da pesca não é novidade no estado e revela interesses econômicos

Projeto de proibição da pesca não é novidade no estado e revela interesses econômicos
Projeto de proibição da pesca não é novidade no estado e revela interesses econômicos  Maio de 2023. O governo de Mato Grosso propõe a alteração na política de pesca estadual, proibindo por cinco anos a atividade pesqueira. Em pouco mais de três meses, o projeto, chamado de Cota Zero, é aprovado por ampla maioria de deputados e sancionado, passando a vigorar em janeiro de 2024. Uma volta no tempo e cerca de um ano antes dessa tramitação, uma derrota do governo parecia deixar o Rio Cuiabá seguro da construção de usinas hidrelétricas. Qual a relação entre esses projetos? O que está em jogo entre a proibição da pesca e a construção de empreendimentos às margens dos rios? O Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad) explica na última reportagem da série “Um ano depois: o que sobrou do Cota Zero em Mato Grosso?”, que trata dos impactos do primeiro ano da Lei 12.434/24 no estado.  Há quase dois anos a pauta Cota Zero ecoa entre comunidades ribeirinhas e povos da pesca em Mato Grosso. Porém, a lei não refere-se somente à proibição ou extinção de uma atividade profissional sob a alegação de uma suposta - e até hoje, não comprovada cientificamente -, redução no estoque pesqueiro nas bacias de Mato Grosso. Nas últimas reportagens desta série, alguns dos prejuízos socioambientais da legislação já foram expostos, incluindo a perda de condições financeiras e os impactos na economia de cidades e as mudanças no modo de vida tradicional de milhares de famílias.  O racismo ambiental do Projeto de Lei 1.363/2023 foi um dos pontos alertados por organizações socioambientais como o Formad, desde a sua apresentação. Era nítido o desenho que estava se fazendo com a marginalização e precarização da vida de pescadoras e pescadores, até então, moradores e defensores das águas e dos territórios alvos de interesses de atividades exploratórias como a mineração, empreendimentos hidrelétricos e imobiliários, entre outras.  “A questão aqui é dispor das águas que, para empreendedores é recurso, não tem valor ético, moral, apenas financeiro. Por esse motivo, eles não consideram as pessoas como pessoas, mas como externalidades que devem ser superadas ou utilizadas. Além do fato de que são as populações que lutam pelos territórios, sem elas os ecossistemas não têm quem as defenda!”, observa Herman Oliveira, secretário executivo do Formad. Em setembro de 2019, o Projeto de Lei 957/2019, de autoria do deputado estadual Wilson Santos, propôs a proibição da construção de usinas hidrelétricas (UHE) e pequenas centrais hidrelétricas (PCH) em toda a extensão do Rio Cuiabá. A propositura tramitou na Assembleia Legislativa por quase três anos, entre pareceres de comissões temáticas e as aprovações em duas votações, conforme regimento interno. Porém, ao chegar nas mãos do governador Mauro Mendes, o projeto foi integralmente vetado.  Contrariando uma lógica de aliança entre parlamentares e o Executivo em Mato Grosso, e também bastante motivado pela pressão popular e mobilização de organizações da sociedade civil, o veto acabou sendo derrubado, por 20 votos a três, em uma sessão histórica na luta contra a implantação de empreendimentos hidrelétricos. Era 24 de agosto de 2022 e o grito “Rio Cuiabá livre!” venceu. Mas na terra do “estado do progresso”, uma derrota dessas não duraria muito tempo. Eis que, meses depois, o PL 1.363/23 surge em regime de urgência urgentíssima, agora sob o discurso de proteção ambiental, e o governador Mauro Mendes, que destacou a ausência de estudos técnicos no projeto que proibia a instalação de usinas, ignorou a ciência para aprovar a proibição da pesca.  Comparar a tramitação dos dois projetos levanta uma série de questionamentos. O primeiro, PL 957/2019, que trazia a proibição das usinas hidrelétricas, foi apresentado em setembro de 2019 e chegou a ficar quase dois anos na geladeira da ALMT até ser retomado em agosto de 2021, quando teve o primeiro parecer da Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Recursos Minerais. A aprovação aconteceu em maio de 2022, quase um ano depois. O veto do governador foi publicado em julho do mesmo ano e derrubado no mês seguinte.  Já o PL 1.363/23 entrou em discussão na sessão ordinária de 31 de maio de 2023, conquistando o parecer favorável da Comissão de Meio Ambiente dois dias depois. No mesmo dia, 2 de junho, a proposta é colocada para votação e aprovada em primeira sessão. A celeridade chamou a atenção de organizações da sociedade civil, colônias de pescadores e movimentos sociais que tiveram pouco tempo para iniciar uma tentativa de resistência ao projeto. Nos bastidores, parlamentares como o deputado Lúdio Cabral (PT) e Wilson Santos (PSD), articularam e apresentaram emendas e substitutivos para que itens do projeto fossem alterados. Ao todo, foram 14 emendas e dois substitutivos. Neste período, o destaque ficou pela falta de transparência a respeito dos textos em tramitação, incluindo a redação final, aprovada em 13 de julho de 2023 e sancionada pelo governador no mês seguinte. “Para nós, assim como para toda a população atenta, o que salta aos olhos é que os legisladores não têm a menor pretensão de defender a população e situações como essas deixam claro quais são os reais interesses que determinam o comportamento da maioria esmagadora dos parlamentares”, analisa Oliveira. De acordo com o Boletim de Monitoramento de Pressões e Ameaças às Terras Indígenas na Bacia do rio Juruena, produzido pela Operação Amazônia Nativa (OPAN), de maio de 2023 a fevereiro de 2024 (período de recorte do material), cinco projetos avançaram para fases de construção ou operação na maior bacia hidrográfica de Mato Grosso. Também houve uma alta de quase 40% no número total de empreendimentos hidrelétricos (CGHs, PCHs e UHEs), nos últimos anos, evidenciando a expansão do setor de energia no estado.   “O ritmo acelerado com que esses projetos estão progredindo pode indicar uma possível desconsideração ao direito de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e das comunidades tradicionais que podem ser impactadas. Além disso, a rapidez desses processos parece atropelar os debates necessários sobre questões críticas, como o uso múltiplo dos recursos hídricos, a saúde pública, as mudanças climáticas e os múltiplos impactos ambientais”, traz um trecho do relatório que pode ser visualizado na íntegra, clicando aqui.  Uma reportagem da Agência Pública, de agosto de 2022, revelou por meio de documentos que o governador Mauro Mendes pressionou entidades, órgãos públicos e políticos para garantir a flexibilização de leis que viabilizassem a construção de usinas hidrelétricas em Mato Grosso, especificamente, no Pantanal. A pressão alcançou até a Agência Nacional de Águas (ANA). O material detalha a relação entre o governador e empresas como a Maturati Participações e outros grupos interessados na construção de empreendimentos hidrelétricos em bacias mato-grossenses.  Mortalidade de peixes no Teles Pires e a UHE Sinop Assinado pelo pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA), Philip Fearnside, um parecer técnico de 2018 apresentou dados relacionando a mortalidade de peixes no Rio Teles Pires, com a implantação da Usina Hidrelétrica de Sinop. O documento foi produzido para o Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPE-MT) e revela os impactos sobre a ictiofauna (conjunto das espécies de peixes existentes em uma região biogeográfica) com o início das atividades da usina, em setembro de 2019. A construção foi executada pela multinacional francesa Electricité de France (EDF), por meio da brasileira Sinop Energia (Companhia Energética Sinop, SA), detendo 51% das ações. Com 24,5% cada, a usina possui como acionistas minoritárias as Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte) e a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco S.A. (Chesf). Entre março e maio de 2019, a agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real divulgou a série A Hidrelétrica de Sinop, com informações do parecer técnico. Entre os elementos que deram início à investigação foi a morte de 13 toneladas de peixes ao longo dos 27 km de extensão do rio abaixo da barragem da UHE. Do total, cinco toneladas foram recolhidas pela empresa. O restante foi deixado nas águas, gerando imagens chocantes de diversas espécies de peixes mortos boiando no rio.  De acordo com o documento, um dos principais motivos causadores da morte seria o baixo teor de oxigênio na água liberada do reservatório. Três medidas feitas pela Perícia Oficial e Identificação Técnica (Politec) de Cuiabá constataram teores na média de 1,00 mg por litro, quando a Resolução 357/2005 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determina o padrão mínimo de 4 mg por litro de água da Classe 3.  Reveja a nossa série “Um ano depois: o que sobrou do Cota Zero em Mato Grosso?” é uma série de reportagens assinada pela jornalista Bruna Pinheiro e produzida pela Secretaria Executiva do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), rede composta por quase 40 organizações socioambientais do estado, e que acompanha o Cota Zero desde o início da sua tramitação. O Formad está entre as entidades da sociedade civil que atuam na mobilização de pescadoras e pescadores em Mato Grosso, além do apoio jurídico ao processo e o combate à desinformação do caso. Para ler as reportagens anteriores, acesse o site: www.formad.org.br.