Poeta cuiabano conhecido internacionalmente é ignorado em sua terra natal
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13/11/2019 - 23:59
manoeldebarros
REDAÇÃO
Há 5 anos completados nesta quarta-feira (13) morria aos 97 anos de idade o cuiabano Manoel de Barros, um dos maiores poetas da língua portuguesa. Mas em sua terra natal, porém, onde nunca foi devidamente cultuado, ele já estava “morto” há muito tempo
Cuiabano, nascido no Bairro do Porto, Manoel de Barros, respeitado nos meios cullturais do país e também no exterior pela originalidade e beleza poética de sua obra, pode ser comparado ao “santo que morreu sem fazer milagres em sua terra natal”, onde era e continua sem ser cultuado, inclusive pelos círculos ditos acadêmicos e intelectualizados.
Talvez, pelo fato que saiu da Capital mato-grossense ainda bebê em companhia de seus país que foram viver inicialmente no Pantanal, na região de Corumbá, hoje Mato Grosso do Sul, o fato é que Manoel de Barros é praticamente um desconhecido em sua terra natal, onde não existe um busto ou placa sequer mencionando que ele nasceu em Cuiabá.
Sobre o poeta, confira texto-depoimento do jornalista DERMEVAL NETTO, publicado hoje no Caderno B do Jornal do Brasil. Vale a pena conferir:
Neste 13 de novembro, há cinco anos, o poeta Manoel de Barros nos deixou, aos 97 anos.
"Poesia é voar fora das asas". Do seu verso, voou como um passarinho, pra sua eternidade.
Tive o privilégio de conhecê-lo, nos anos 90. Sentamos lado a lado num voo São Paulo/Campo Grande - MS. O poeta voltava do Rio, tinha ido visitar sua filha e assistir ao filme, lançado à época, "O Carteiro e o Poeta".
Eu trazia nas mãos o seu livro "Gramática Expositiva do Chão", emprestado da amiga Maria Gessy. Ia com ela dar uma oficina e treinamento sobre criação e produção de TV, na TVE de Campo Grande. Preparava um roteiro, a partir de poemas de Manoel, para esse trabalho.
O destino me juntou ao poeta ainda no percurso, desde a esteira da bagagem de mão no aeroporto, o cafezinho na lanchonete, e a bordo a conversa variada, sobre cinema e filosofia, sobre Neruda e Goethe, sobre fazenda, natureza e Pantanal.
Foi para mim um encontro marcante e inesquecível. Que seguiu em Campo Grande, com o convite a lanchar em sua casa. Depois ele veio (rompendo a fama de arredio) à TVE assistir ao trabalho final dos alunos, vídeos produzidos sobre seus poemas. Em seguida o chopp e um papo animado num barzinho, num lindo entardecer da cidade, de costas pra um rio, no calor de dezembro. Conversa de um poeta divertido, que amava viver, sonhar e derivar pelos caminhos tortos, marginais e acidentados da poesia.
Sua poesia toca direto na alma, seus poemas feitos de terra, mato, água, bichos e imaginação, de um inventor e alquimista, de versos e palavras.
"Tudo que não invento é falso". "Não gosto de palavra acostumada"." A poesia é uma voz de fazer nascimentos". "Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria".
Seus títulos, carregados de impureza, desacertos, rupturas, desvios. Gramática Expositiva do Chão, Compêndio para Uso de Pássaros, O Guardador das Águas, Memórias Inventadas, Livro sobre Nada, Arranjos para Assobio, Meu Quintal é Maior do que o Mundo, O Livro das Ignorãnças, Arquitetura do Silêncio. Entre outros.
Carlos Drummond declarou, em 1986, que Manoel de Barros era o maior poeta vivo do Brasil.
Carrego comigo:
"Tem mais presença em mim o que me falta".
"O meu amanhecer vai ser de noite".
"A palavra amor anda vazia. Falta gente dentro dela".
Hora de ler Manoel de Barros. Para aquecer o
coração.
Ainda sobre o poeta, leia também texto do jornalista Mário Marques de Almeida, intitulado “Arte de embrulhar pedras”.
Rezo nos versos de Manoel de Barros, o santo da casa que não faz milagres em sua terra natal
Quando preciso ensimesmar, dar aquela volta por dentro, encabrestar a língua e oxigenar o meu eu, rezo no silêncio da poesia de Manoel de Barros. Recolho-me em seus versos e começo a querer entender a alegria das pedras que rolam no quintal do poeta.
É esse exatamente o meu fazer nesta sexta-feira em que apenas cato letras para servir neste domingo, sem poder embalá-las para presente como Barros faz com as pedras, que viram ovos de páscoa em suas mãos abençoadas. De dedicado e sutil oleiro do verbo. Escultor do vernáculo, porém sem se ater religiosamente às regras gramaticais.
Sem essa tola preocupação que me atormenta se estou ou não colocando corretamente os pingos nos is. Ele pinga os is no pingo e lagartixa nas vírgulas. Como invejo e admiro sua transgressão com o modo de palavrear! Solto, leve e livre nas abas do tempo. Sem sofrer com a maldita escravidão da gramática e ortografia. Com suas confusas mudanças que mais complicam que explicam.
Mas, afinal, só ele consegue dar asas aos sapos e fazer as rãs voarem. Coitado de mim, que mal consigo dar meus pulos. Daí, para esse poeta maior, ser moleza transformar cascalho em bombom fino. E sua criação continua aprimorada prestes ele completar 95 anos de vida. Ele que veio ao mundo em 1916 no Beco da Marinha, no bairro do Porto, nesta Cuiabá quase trezentona.
Cidade onde, aliás, é pouco reverenciado pelos chamados donos da cultura local. Que se apoderam desses nichos (fundações e secretarias) e se aferram sem dó às respectivas verbas como se fossem carrapatos em lombo de anta. E ditam modas e modismos a esmo. Ficam até doce!
Falando nisso, antes que ser chamada de Capital da Copa do Pantanal, Cidade Verde, Portal da Amazônia, como já foi antes cultuada orgulhosamente e com exaltado ufanismo patrioteiro - isto é, quando desbravamento não era sinônimo de devastação ambiental -, Cuiabá, por ser berço de um poeta que fecunda poemas que prosam na umidade pantaneira, deveria ter nas suas entradas e entranhas ainda que fosse um pequeno painel, uma plaquetinha que seja afirmando: AQUI NASCEU MANOEL DE BARROS.
Quando nada, ele que mesmo aplaudido pela crítica como o maior poeta vivo da língua portuguesa contemporânea, não tem busto nem estátuas por aqui, merece a lembrança por extrair destas bandas a sua temática simples de olhar o chão. De andar curvado mirando as coisas aparentemente insignificantes e que ganham relevo e viram majestades na ponta do seu lápis (é assim que ele escreve, como se fizesse do singelo lápis um cinzel esculpindo frases sobre o papel, feito um Aleijadinho da literatura).
A sua matéria-prima literária vem com cheiro, gosto, cara e som da terra molhada do Pantanal, do nosso Pantanal que tem no rio Cuiabá/Paraguai sua principal artéria. Sangrando, infelizmente, a planura pantaneira com detritos colhidos sem tratamento adequado nas cidades plantadas em suas margens. Lixo depurado pela poesia do bom Manoel. Ainda bem!
É, pois, a partir daqui que Manoel de Barros se universaliza em pé de igualdade com outros grandes na moldagem do idioma, mestres na transmutação da palavra em imagens ímpares. Fazendo o mesmo com as imagens, que eles reviram pelo avesso, reencarnadas em verso e prosa.
Forjando beleza na simplicidade. É com essa forma que Deus fabricou a poucos, que Manoel de Barros se funde no mesmo barro de que foi feito Carlos Drummond de Andrade, Thiago de Mello, Cora Coralina ou Fernando Pessoa em seus delírios pelas ruas de Lisboa. Quando sentava versos nas praças.
Boa Páscoa!
Mário Marques de Almeida é diretor do site e jornal Página Única. mario@paginaunica.com.br