A pesca esportiva se tornou um dos grandes atrativos turísticos de Mato Grosso, impulsionada pela diversidade de rios e espécies consideradas “troféu” como dourado, pintado, piraíba e tucunaré. Regiões como o Pantanal, os rios Teles Pires, Juruena e Araguaia despontam como destinos procurados por turistas que movimentam pousadas e barcos-hotel, atraídos pela promessa de grandes exemplares. Mas, por trás do lazer e da movimentação econômica, há uma série de impactos ambientais e tensões sociais que colocam em lados opostos pescadores amadores e profissionais.
A professora titular Lúcia Mateus, do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso, afirmou em entrevista ao que a diferença entre as modalidades de pesca vai além do objetivo da atividade. Segundo ela, a pesca artesanal está ligada à subsistência de comunidades ribeirinhas, marcada por baixa renda e embarcações simples, enquanto a pesca esportiva envolve alto investimento em equipamentos e infraestrutura. Mateus alerta que ambas exploram os mesmos estoques naturais que, se não forem controlados, podem entrar em colapso, provocando fome, desemprego e perda cultural. Por isso, defende a adoção de medidas de manejo que limitem o esforço de pesca e garantam a sustentabilidade da atividade.
Lúcia critica a Lei da do transporte Zero, em vigor desde 2024, que proíbe por cinco anos o transporte e comércio de 12 espécies em Mato Grosso. Segundo a pesquisadora, a medida ignora fatores determinantes da queda dos estoques, como poluição, desmatamento e barragens, e foi adotada sem apresentar estimativas de impacto social ou indicadores de sucesso. Para ela, qualquer plano de manejo precisa ser construído com participação dos usuários, base científica sólida e metas mensuráveis — caso contrário, aumenta o risco de aprofundar desigualdades e inviabilizar o modo de vida de milhares de pescadores tradicionais.
VGN - Mato Grosso vem sendo apontado como um dos principais destinos da pesca esportiva no Brasil. Quais são as regiões mais procuradas no Estado e quais espécies atraem mais os turistas?
Mato Grosso tem o privilégio de abrigar rios de três grandes bacias com um excelente potencial para produção pesqueira e, consequentemente, atrai praticantes da pesca esportiva que, geralmente, têm interesse em regiões onde espécies “troféu” (peixes de médio e grande porte) como dourados, grandes bagres (como pintado e piraíbas), tucunaré, entre outros, são abundantes. Tanto a bacia do alto rio Paraguai, quanto as bacias dos rios Teles Pires, Juruena e Araguaia tem esse potencial, entretanto, a atração dos turistas de pesca depende também da existência de infraestrutura, tais como pousadas, barcos-hotéis, etc.
VGN - Ultimamente, vem havendo debates entre os malefícios e benefícios tanto da pesca esportiva, quanto da pesca artesanal de subsistência. Qual a diferença entre elas?
As modalidades de pesca variam quanto ao perfil socioeconômico e cultural dos pescadores, pela quantia disponibilizada para a embarcação utilizada, combustível, alimentação, equipamentos de pesca, armazenamento do pescado, quantidade do pescado a ser transportado, bem como, pelo tempo dispensado para a captura, pela quantidade de pescadores presentes nos rios diariamente, preferência por espécie e pela motivação ou objetivo da pesca. Todos estes fatores resultam em uma interação diferenciada entre pescador e peixe. Entretanto, todas as modalidades exploram estoques naturais que são impactados negativamente. Se os impactos negativos não forem controlados, os estoques pesqueiros podem colapsar.
O colapso dos estoques pesqueiros leva ao colapso da pesca, condenando seus usuários a fome, desemprego, perda de renda e perda da experiência da pesca recreacional (o descanso junto a natureza, o convívio com familiares e amigos, o deleite gustativo de saborear um peixe selvagem fresco, etc). Assim, independente da modalidade praticada, é necessário o estabelecimento de medidas de controle de esforço que garantam a sustentabilidade da atividade.
VGN - No Araguaia, a captura do pirarucu é tradicional entre pescadores artesanais, mas já há conflitos com a pesca esportiva e até com indígenas. Como equilibrar esses diferentes usos do recurso?
Recursos de propriedade comum, como os recursos pesqueiros, não são exclusivos por natureza. Assim eles têm duas características: 1- dificuldade de exclusão, isto é, controle de acesso ao recurso; 2- a capacidade que cada usuário tem de subtrair do bem-estar do outro. Isto causa divergência entre o individual e o coletivo. É crescente o número de manejadores e pesquisadores da pesca que reconhecem que a pesca não pode ser manejada eficientemente sem a cooperação e participação dos usuários para fazer leis e regulações. Portanto, é preciso reunir os usuários do recurso e os responsáveis pelo manejo para estabelecer o plano de manejo para
a espécie, explicitando os objetivos e medidas de manejo que garantam o compartilhamento justo do recurso.
VGN - O governo de Mato Grosso adotou a chamada “Lei do Transporte Zero”, proibindo o transporte e comércio de 12 espécies por cinco anos. Na prática, qual o impacto dessa medida para pescadores profissionais e comunidades ribeirinhas?
Ao escolher proibir a pesca artesanal comercial de algumas espécies, o Estado escolheu, sem qualquer suporte aceitável, zerar o efeito dos outros fatores e inflar arbitrariamente o efeito da pesca artesanal comercial. Veja que não foi da mortalidade por pesca. Foi de uma de suas fontes. Vai funcionar? Bom, como a lei não é transparente a ponto de cumprir a obrigação de informar à sociedade como será avaliado o sucesso da ação, ninguém saberá, e o Estado poderá festejar um sucesso que só ele viu. Neste contexto, os pescadores geralmente sentem-se forçados a reagir às propostas que são injustificáveis e algumas vezes sem suporte científico. Apesar disto, ultimamente os pescadores comerciais não têm vencido muitas batalhas de manejo, mesmo quando os fatos biológicos estão do seu lado.
VGN - Críticos da lei afirmam que ela privilegia o turismo da pesca esportiva em detrimento da subsistência de pescadores e comunidades ribeirinhas. A senhora acredita que essa política pode agravar desigualdades sociais no Estado e prejudicar a existência dessas comunidades?
Um plano de manejo consequente, baseado na melhor Ciência, deve se ancorar em uma análise criteriosa (e quantitativa) dos trade-offs (custos e benefícios) associados com as alternativas de ações propostas para se atingir ao objetivo do manejo. Tecnicamente falando, em pesca, o manejo é exatamente a arte de maximizar benefícios enquanto minimiza custos, dado o conjunto de alternativas de ações possíveis para se atingir ao objetivo, definido em parceria estreita com os usuários. Assim, apresentar uma estimativa confiável (com intervalo de confiança) do impacto socioeconômico, incluindo o número de pescadores afetados e os outros danos sociais associados à ação proposta, é uma obrigação comum a qualquer plano de manejo. Por isso, essa estimativa deveria ter sido apresentada pelos proponentes da ação do banimento da pesca comercial das principais espécies comerciais. Essa falha é fatal e pode, sim, aumentar a vulnerabilidade de grupos sociais dependentes da pesca.
VGN - Do ponto de vista ambiental, a proibição de espécies como dourado, pintado e tucunaré realmente garante a reposição dos estoques, ou outros fatores — como desmatamento e barragens — pesam mais na redução dos peixes?
Provavelmente mais do que a pressão de pesca, as alterações ambientais que o os rios vêm sofrendo nos últimos anos, devido às atividades antrópicas, poderão levar à depleção das populações de peixes. Poluição por esgoto in natura, contaminação por agrotóxicos são alguns dos problemas que devem ser seriamente enfrentados para que a qualidade da água não seja comprometida e os estoques pesqueiro não sejam afetados. Para tratar o problema, o mais importante é o monitoramento dos desembarques de forma contínua. Ademais, sem dados de qualidade, não é possível imputar toda a responsabilidade para pesca.
A abundância (em termos de biomassa, por exemplo) do estoque é moldada por múltiplos fatores, internos e externos ao estoque. Dentre os fatores internos ao estoque podemos citar a taxa intrínseca de incremento, o tempo de geração, a fecundidade, a razão sexual, a taxa de crescimento somático, dentre outros. Dentre os fatores externos podemos citar a saúde do rio, que é função da carga de nutrientes, níveis de poluição, estrutura do hábitat, assoreamento, desmatamento da bacia hidrográfica, dentre outros.
Os efeitos negativos das barragens para a pesca de rio são amplamente conhecidos, reduzindo a quantidade total e mudando as espécies de peixes capturadas. Praticamente todas as espécies “nobres” (migradoras) desaparecem, ou tem suas capturas fortemente reduzidas, enquanto o valor do pescado diminui e os gastos com as pescarias aumentam, como mostram vários estudos.
Outro fator externo importante é a interação do estoque com as outras espécies na rede de trófica, incluindo os pescadores. Em resumo, essa é uma resposta (abundância do estoque alvo) governada por muitos preditores (poluição, carga de nutrientes, desmatamento, assoreamento, abundância de parasitas, abundância de predadores, abundância de presas, mortalidade por pesca, etc) que devem ser monitorados a partir de indicadores pré-estabelecidos para que se possa avaliar a efetividade de qualquer medida de manejo.
VGN - Há quem defenda que o pesque-e-solte seja sustentável, mas pesquisas mostram que muitos peixes morrem após a soltura devido ao estresse e ferimentos. Até que ponto essa prática pode ser considerada ambientalmente correta?
O pesque-e-solte surge como alternativa a pesca extrativa, com a justificativa de que o peixe devolvido pode seguir seu ciclo de vida. Entretanto, o sucesso da estratégia depende de muitos fatores, entre eles a taxa de mortalidade após a soltura que, por sua vez, vária com a espécie capturada, com as condições ambientais, com o manuseio após a captura, tempo de briga durante a captura, tipo de anzol utilizado, entre outros fatores. Mesmo que o peixe sobreviva ao evento de captura, o estresse fisiológico da captura, pode levar a fadiga muscular e outras alterações que podem afetar a capacidade reprodutiva, reduzir a imunidade e aumentar a vulnerabilidade a predadores. Assim, o pesque-e-solte não é isento de impactos e, em muitos casos, pode comprometer populações se não houver manejo adequado, fiscalização e conscientização ambiental.
VGN - Em termos éticos, há um debate sobre usar seres vivos para entretenimento. Como a senhora avalia esse questionamento em relação à pesca esportiva?
Essa é uma questão que causa muita controvérsia e deve ser alvo de debate sério. Em vários países, a discussão sobre o bem-estar animal incluí os peixes e a sustentabilidade dos estoques passa a ser um dos aspectos a ser considerado, sendo que a questão ética adquire maior relevância. O tema deveria ser debatido pela nossa sociedade e os prós e contras deveriam ser avaliados para que as melhores decisões fossem tomadas considerando questões conservacionistas, éticas, econômicas e sociais.
VGN - A atividade movimenta pousadas, barcos-hotel e guias, gerando milhares de empregos e bilhões de reais no país. De que forma Mato Grosso pode aproveitar esse potencial sem excluir os pescadores profissionais?
A competição entre usuários da pesca tende a acelerar a captura de pescados, levando os estoques das espécies alvo da pesca ao colapso. Para que o colapso não ocorra, é preciso manejar a atividade pesqueira de modo a garantir uma pesca produtiva, sustentável e distribuída de forma equitativa aos diferentes grupos de usuários. Há muitas formas de partilhar o recurso pesqueiro entre esses usuários sem lançarmos mão de forma autoritária de uma medida tão extrema, retirando da competição o grupo de usuários com menor poder econômico e com menos meios para ter acesso às benesses produzidas pelo Sistema. Por um lado, essa competição entre os diferentes grupos é algo suicida, porque ignora as forças externas a pesca que pesca está submetida.
Dessa forma, primeiramente é preciso considerar os fatores que determinam a qualidade do ambiente do ponto de vista das populações de peixes. Assim, podemos elencar quatro pontos fundamentais:
1- complexidade do habitat;
2 – qualidade da água;
3 – o pulso de inundação (em caso de ambientes sazonais);
4 - conectividade lateral e longitudinal de habitats ao longo da calha do rio e sua área alagável.
Portanto qualquer atividade que afete estes fatores implicará em alterações na produção de peixes e, portanto, na atividade pesqueira, seja ela esportiva ou profissional artesanal. Adicionalmente, é imprescindível a conscientização de usuários da pesca, manejadores, conservacionistas e da sociedade de maneira geral de que o sucesso da pesca, enquanto atividade econômica, depende da “saúde” dos estoques que por sua vez é dependente da qualidade do ambiente.
VGN - O que falta hoje em termos de fiscalização e manejo para que a pesca em Mato Grosso seja sustentável para o turismo e também para quem vive da atividade?
Basicamente, as medidas de manejo pesqueiro em MT se limitam a medidas restritivas, como cotas de captura, tamanho mínimo, períodos de proibição da pesca, proibição de apetrechos e de locais. Porém, não há nenhuma estratégia de avaliação das eficácias dessas medidas, pois não há monitoramento dos desembarques pesqueiros ou da captura pela pesca esportiva. A avaliação das medidas de manejo é possível desde que os objetivos das medidas sejam claros e que indicadores sejam apontados e monitorados.
Tais medidas, apesar de importantes, não têm efetividade se não forem acompanhadas de uma avaliação constante dos estoques e da qualidade ambiental, a qual interfere diretamente na saúde das populações de peixes. Muitas medidas adotadas pelos governos estaduais nos últimos anos, são baseadas na preconcepção de que a pesca é, se não o único, o principal fator de depleção dos estoques. Dessa forma não é dada a devida atenção aos sérios fatores de degradação ambiental que afetam os rios com crescente intensidade.
VGN - Na sua visão, qual seria o caminho ideal para conciliar conservação ambiental, direitos sociais dos pescadores artesanais e o crescimento do turismo de pesca esportiva em Mato Grosso?
Para manter a pesca como atividade econômica é preciso controlar os fatores intrínsecos que lhe afetam, principalmente a sobrepesca, bem como aqueles externos que causam alterações ambientais e que afetam a capacidade suporte do ambiente e, por conseguinte, a produtividade dos estoques pesqueiros.
A sobrepesca pode ser evitada através de medidas que garantam que a explotação mantenha-se em níveis populacionais aceitáveis, permitindo a renovação dos estoques. Essas medidas, para que sejam eficazes, devem ser negociadas com os vários usuários dos recursos pesqueiros, que por sua vez têm interesses distintos. Basicamente, elas implicam controle do esforço de pesca, definindo tamanhos de captura, tipos de petrechos, locais e períodos de pesca permitidos, que devem ser monitorados. No entanto a renovação dos estoques é fortemente dependente da qualidade ambiental, o qual precisa ser mantido saudável.
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