Edivaldo Lourival Mampuche
“Um dia chega, a esperança um dia chega, porque a esperança é a última que morre. É difícil, é luta, é de perder a vida, mas nada é impossível. Nós queremos defender a criação de Deus, não desmatar. Queremos cuidar, viver, trabalhar e viver nessa terra”, celebrou o cacique Manoel Kanunxi, do povo Manoki (MT), quando soube da assinatura do decreto homologando o Território Indígena (TI) Manoki, com extensão de 251.539 hectares. Ainda foram homologados outros três territórios, dois deles também em Mato Grosso, as TIs Estação Parecis e Uirapuru, ambas do povo Haliti-Paresi, que possuem, respectivamente, 2.170 e 21.667 hectares.
Se a recepção da notícia entre os indígenas foi de celebração e alívio, entre a classe política do estado gerou uma onda de reações adversas, capitaneadas pelo governador Mauro Mendes (União), que levantou alegações de que a homologação seria inconstitucional e de que haveria uma ampliação da Terra Indígena (TI) Manoki. No final de novembro, por meio da Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso (PGE/MT), o executivo estadual ingressou com uma petição no Supremo Tribunal Federal (STF) argumentando que o decreto presidencial fere o artigo 13º da lei do marco temporal (14.701 de 2023), que impede a ampliação de terras indígenas já demarcadas.
Além de Mauro Mendes, o deputado federal Rodrigo da Zaeli (PL-MT), o deputado estadual Dilmar Dal Bosco (União), o presidente da Associação Mato-grossense de Municípios, Leonardo Bortolin, e outras figuras políticas de Mato Grosso têm questionado de maneira veemente as homologações. Em contrapartida, lideranças do movimento indígena estadual, a Defensoria Pública da União (DPU) e membros de organizações da sociedade civil refutam essa narrativa, sob a perspectiva de se tratar de direito originário reconhecido pela Constituição e que os territórios em questão são declarados e demarcados pelo Estado brasileiro há pelo menos uma década.
Nesta terça-feira (09/12), véspera do retorno do julgamento sobre a constitucionalidade da lei do marco temporal, a presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliane Xunakalo, concedeu entrevista coletiva para endossar o discurso contra a narrativa de Mauro Mendes e aliados e para reforçar a luta contra a lei 14.701 e a tese do marco temporal. Ela chamou atenção para a postura corporativista dos políticos mato-grossenses, que muitas vezes são também latifundiários ou mantém ligações estreitas com representantes do agronegócio.
“Não houve nenhuma ampliação, houve uma homologação, depois de décadas de luta, com respaldo da Funai, do Ministério da Justiça e do Ministério dos Povos Indígenas. Toda a classe política de Mato Grosso combate isso porque boa parte também tem propriedades em terras indígenas ou tem parentes ou tem amigos que têm. É um grupo que se protege, é cooperativismo, e nós somos a parte mais vulnerável, então somos desqualificados para que toda a sociedade fique contra a gente. Tem mais de um milhão de hectares de CARs (Cadastro Ambiental Rural) sobrepostos a terras indígenas. Isso não é só um dado, é uma violência enorme. Nossa terra não é uma propriedade, nós temos lastro de pertencimento. Nós temos ligações espirituais com a terra”, declarou Xunakalo.
As demarcações físicas dos territórios homologados foram feitas com base em estudos técnicos que atestam a ocupação e presença histórica desses povos em seus respectivos territórios, e portanto a homologação é um dos ritos finais desse processo. “A homologação é um ato burocrático da presidência da república. Não há mais o que questionar ou refazer. Todas as fases de um processo demarcatório podem ser questionadas judicialmente. Mas, quando passa pelo Ministério da Justiça e o território é demarcado, o presidente só homologa, cabe a ele apenas formalizar um rito que já identificou e já reconheceu os direitos do povo sobre aquele território. No caso da TI Manoki, isso aconteceu quase duas décadas após a demarcação. O único ponto que deveria ser questionado é tamanha demora para a homologação”, comentou Andreia Fanzeres, coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da Operação Amazônia Nativa (OPAN), organização que há décadas trabalha em parceria com os Manoki, os Haliti-Paresi e outros povos da bacia do rio Juruena.
A Defensoria Pública da União (DPU), por meio de carta aberta assinada pelo defensor regional de direitos humanos Renan Vinicius Sotto Mayor de Oliveira, também rebateu as críticas do governo de Mato Grosso e assegurou que a homologação dos territórios está "plenamente compatível com a Constituição, constituindo exercício legítimo e obrigatório da competência da União para assegurar a efetivação dos direitos territoriais indígenas". Nesse mesmo sentido, o Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), que reúne diversas organizações da sociedade civil, publicou uma nota de repúdio contra os ataques do governador e políticos de Mato Grosso.
Contexto histórico do povo Manoki e a falácia da ampliação territorial
O povo Manoki, também conhecido como Irantxe, quase foi dizimado após contato com colonizadores. Em 1968, durante a ditadura militar, foram realocados em uma área fora de sua ocupação histórica, que passou a ser chamada TI Irantxe, com extensão de 46 mil hectares. Desde então, lutam pelo reconhecimento de seu território ancestral. Finalmente, no início do século XX, a TI Manoki foi demarcada, abrangendo 205 mil hectares de áreas historicamente ocupadas pelo povo, porém a homologação só saiu em 2025, em decreto que unificou os dois territórios já demarcados e contíguos, mantendo integralmente sua extensão original, sem nenhuma ampliação. A homologação serve para consolidar a proteção da área, e não para expandi-la.
Feita a homologação, o próximo passo é a desintrusão, que consiste em retirar da área invasores e posseiros, cabendo ao Estado indenizar eventuais benfeitorias de boa fé. Dados do relatório “CAR como instrumento de grilagem”, produzido pela OPAN e publicado em 2024, indicam que 98.286 hectares da terra indígena apresentam sobreposição de imóveis rurais, o que corresponde a cerca de 48% de sua área. Os Manoki reivindicam há décadas a ocupação do território tradicional, mas querem fazer isso com segurança. “Tem muito caminho pela frente ainda, porque tem a desintrusão, mas eu acredito que com muita luta a gente vai conseguir ocupar esse território. Nós vamos trabalhar com esse território e garantir assim a nossa soberania de fato”, comentou Marta Tipuici, uma das lideranças do povo.
Os Manoki foram retirados de seu território tradicional em decorrência de uma série de violências que se agravam com a demora para reconhecer seus direitos e garantir o retorno à terra. “Só não ocuparam ainda porque já estava invadido e não estava homologado, então isso criava uma insegurança. São 65 CARs sobrepostos, um assentamento sobreposto parcialmente e várias fazendas, incluindo uma de 90 mil hectares. Desde a declaração do território, não foram garantidas condições mínimas de segurança para usufruírem dali como manda a Constituição, mas ainda assim nunca deixaram de se organizar para fazer vigilância territorial, expedições de monitoramento e para apresentar as áreas sagradas para os mais jovens. É um território manejado e acessado por eles”, explica Andreia Fanzeres.
Mato Grosso tem 75 terras indígenas demarcadas, somando 15 milhões de hectares, o equivalente a 16% do território estadual. Frequentemente, representantes políticos do estado usam esse dado para alegar que é uma área desproporcional diante do contingente indígena. Esse também foi um dos pontos abordados por Eliane durante a coletiva de imprensa. “Não tem muita terra para poucos indígenas. Tem proprietários com territórios maiores que os nossos e ninguém diz que é muita terra para uma única pessoa ou grupo familiar. E muitas vezes essas propriedades não cumprem nenhuma função social. São os argumentos de sempre para justificar o não reconhecimento de nós enquanto pessoas, porque território é nossa dignidade humana. Nunca tivemos nossos direitos respeitados sem luta, sem sangue e sem morte. Até quando?”
Enquanto o governo do estado busca deslegitimar direitos constitucionais das populações indígenas, o povo Manoki celebra a conquista e a possibilidade de retornar à terra onde estão enterrados seus antepassados, mas infelizmente nem todos tiveram esse direito. “A gente luta por essa homologação há mais de 40 anos, desde que meus avós estavam vivos. Hoje a gente fica muito emocionado lembrando de toda a história, lembrando de tudo que nossos avós diziam, principalmente meu avô Maurício Tupxi, que dizia que gostaria de ser enterrado naquela terra e gostaria que fosse homologada antes que ele partisse daqui, mas infelizmente não foi desse jeito. Hoje nós temos a oportunidade de dizer que nós conseguimos e com certeza eles estão muito felizes também, porque nós acreditamos nisso”, desabafou Marta Tipuici quando soube da notícia.
Entenda o imbróglio jurídico do marco temporal
Em 2023, o STF declarou inconstitucional a tese do marco temporal no julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, de repercussão geral, e reafirmou o direito originário - anterior à própria criação do Estado - dos povos indígenas a seus territórios. Três meses depois, antes que o acórdão fosse publicado e afrontando a decisão da Suprema Corte, a Câmara dos Deputados aprovou a lei 14.701/2023. O governo federal ainda vetou o trecho que instituía o marco temporal, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. Em 2024, o ministro Gilmar Mendes instaurou uma Câmara de Conciliação para tentar costurar um acordo entre ruralistas e indígenas, colocando em negociação um direito fundamental dos povos indígenas, o que agora está em julgamento pelo Pleno do STF.
A corda desse cabo de guerra foi tensionada nesta terça-feira (09/12), quando o Senado aprovou, em regime de urgência e sem sequer aguardar apreciação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023, que, ao ratificar os termos da lei 14.701, pretende incluir na Constituição a tese do marco temporal, o que impossibilitaria qualquer contestação por parte do STF. A manobra parlamentar foi feita na véspera do retorno do julgamento sobre a constitucionalidade da lei do marco temporal, que teve início nesta quarta (10/12), aumentando a pressão sobre os ministros. Enquanto a tese do marco temporal prevalece, assim como outros retrocessos aos direitos indígenas, a violência continua afetando povos de todo o país.
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