A censura imposta pelo prefeito de Cuiabá, o bolsonarista Abílio Brunini (PL), à professora Maria Inês da Silva Barbosa, da Universidade Federal de Mato Grosso, durante conferência sobre o Sistema Único de Saúde (SU), na quarta-feira (30), rompeu as fronteiras do Brasil e ampliou o leque de críticas ao gestor da capital de Mato Grosso, que, em contrapartida, tinha sua postagem no Instagram, até o fechamento desta matéria, com mais de 755 mil visualizações e 20,1 mil comentários - a grande maioria, favorável ao seu comportamento.
O prefeito interrompeu, logo no início, a palestra de Maria Inês Silva Barbosa, mestre da UFMT, por ela ter cumprimentado a todos, a todas e a "todes" Para o prefeito, ao usar o pronome neutro "todes", a pesquisadora teria revelado "dotrinação".. Abílio tomou a palavra, repreendeu a palestrante, ameaçando deixar o evento - que se encerra nesta sexta-feira (1º), no Hotel Fazenda MT. Ele foi vaiado pela atitude.
A atitude de Abílio Brunini é considerada "autorirária". Ele é conhecido pelo apoio à Jair Bolsonaro (PL), inelegível por decisão do TSE e réu, por decisão do STF, por tentativa de golpe da Estado, para tentar impedir a posse do presidente Lula (PT), eleito em 2022.
Diversas entidades em defesa da igualdade e contra a discriminação de qualquer natureza se manifestaram favoráveis à professora, que é negra, tem cursos de doutorado em entidades de ensino, como a Foundation Course And Specialization Course On Med pela Federal Government Of The Republic Of Austria.
Houve manifestação por parte de grandes veículos de comunicação - como o portal UOL, o jornal O Globo, o site G1, a revista Veja e o site PlatoBR -, além de sites representativos de categorias ligadas às áreas da Saúde Pública, da consciência negra, de notícias de diversos Estados do Brasil, da Congregação do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso, na maioria em defesa de Maria Inês Barbosa, que é aposentada da UFMT, onde atuou como mestre e pesquisadora.
O "conflito" entre Abílio Brunini e Maria Inês da Silva Barbosa aconteceu durante a abertura do evento, na quarta-feira (30). Presente no evento, a reitora da UFMT, a professora doutora Marluce Aparecida Souza e Silva, lembrou que o pronome neutro "todes", condenado pelo prefeito é "uma forma de reconhecer a diversidade" e que, em breve, deverá ser incorporado oficialmente ao vocabulário da língua portuguesa.
"Tudo em nossa sociedade é uma construção. Quantas pessoas já falaram vosmicê? E essa palavra existia em nosso vocabulário. Hoje, não mais, mas já existiu. Essas palavras são transformadas, ao longo de nossa construção social. Então, dizer bom dia a todos, todas e todes, provavelmente, muito em breve, teremos o todes na língua portuguesa", disse a retirora, ao defender a colega da cenruda do prefeito daCapital.
A Agência Brasil, do Governo Federal, postou nota de solidariedade à Maria Inês Barbosa, apontando que a pesquisadora foi "vítima de desrespeito e cerceamento", durante o evento. A nota oficial foi assinada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e, num trecho, afirma: "A tentativa de silenciar a professora Maria Inês, sob o pretexto de 'doutrinação ideológica', fere os valores do SUS e a própria Constituição Federal, que garante a saúde como direito de todas as pessoas, sem exclusões, sem discriminação, sem racismo. Tamanha atitude autoritária, desferida por um representante democraticamente escolhido pelo povo, revela um profundo desconhecimento sobre o papel do SUS e da participação social como instrumento democrático. Instrumento, aliás, tão democrático quanto o poder do voto que elege prefeitos municipais".
As notas de solidariedade à professora e de repúdio à postura de Abílio Brunin também ocorreram por parte do site gov.br, UFMT; Combate Racismo Ambiental; Biblioteca Digital de Teses e Dissertações e Repositório da Produção, ambos da Universidade de São Paulo (USP); Portal Geledés; Odara - Instituto da Mulher Negra; Midia Ninja; Movimento Negro Unificado da Bahia; Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme); Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); Articulação de Organizações de Mulheres Negras (AMNB); Portal Roma News - X; O Dia; Click Goiás; Rádio WEB MS.
Essas publicações acima se referem apenas a quatro páginas de consulta do Google, o maior portal de informações do mundo. O que mostra que a censurapor parte do prefeito de Cuiabá foi amplamente noticiada. E, na maioria das citações, todas as reações foram negativas.
Uma das observaçõe que mais chamaram a atenção foi a manifestação de Ana Flávia Magalhaes Pinto, que assinou uma coluna no UOL, com o título "Maria Inês Barbosa; não se pode calar a voz de uma mulher negra vitoriosa".
No artigo, a autora abre o comentário afirmando: "Brasil, chegou a vez de ouvir mais uma Maria cuja voz tentaram calar. Para falar do ocorrido sem reduzir nossa protagonista à violência vivida, a referência ao memorável samba da Mangueira, me parece a forma mais afetuosa de conduzir a discussão para o pensamento-ação de Maria Inês da Silva Barbos".
Segue a coluna:
"Ela que é professora universitária, doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo - USP, ativista referência nas lutas pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde - SUS e por políticas públicas para a superação do racismo no Brasil, a exemplo da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Sua trajetória individual tem profunda dimensão coletiva.
"Ocorre que esses e outros talentos e virtudes não foram suficientes para protegê-la do grave episódio de violação de integridade que sofreu nesta quarta-feira (30).
Tendo sido convidada a contribuir com os debates da 15ª Conferência Municipal de Saúde de Cuiabá, Mato Grosso, a especialista teve sua fala interrompida pelo prefeito da cidade, logo no início, sob o argumento de que não aceitaria que ela utilizasse vocábulos de linguagem neutra, uma vez que isso não estaria "em conformidade com as nossas regras".
"Nossas regras" de quem? As reações do público presente sugerem que a medida desse "nós" era bem menor do que o prefeito quis fazer crer. A desaprovação foi além do grupo de especialistas que ocupava o auditório do evento. Ganhou as redes sociais e outros veículos de comunicação, fazendo com que o ocorrido alcançasse repercussão nacional Maria Inês Barbosa, felizmente, além de não se curvar ao agressor, recebeu acolhimento de militantes, amizades de longa data e pessoas que ela nunca conhecerá.
"Mas voltando à cena e analisando o perfil subjetivo do prefeito cujo nome não me interessa promover, uma ponderação merece destaque. Teria sido mesmo apenas o uso de um "todes" o fundamento para que ele se sentisse tão impelido para promover aquela performance de autoridade absoluta, seguro de que seus caprichos teriam força de lei capital?
"Maria Inês Barbosa é uma mulher negra retinta, altiva, inteligente e encantadora. Os fachos brancos em seus belos dreads, comumente arrumados em penteados elegantes, podem servir para quem queira calcular sua idade em meio à curiosidade diante da vitalidade que expressa. Mas, se vista através das lentes do racismo e do sexismo, sua certamente não estaria associada a esses adjetivos.
"O sujeito que a agrediu, certamente, faz uso desses óculos. Sua atitude revela uma personalidade impermeável à relevância da trajetória da intelectual que havia sido convencida a proferir a conferência magna "Consolidar o SUS: Com a Força do Povo, Participação Social e Políticas Públicas.
"Também pouco se dimensiona o fato de que recentemente saímos do mês do orgulho LGBTQIA+ e estamos finalizando o mês da mulher afro-latino-americana e caribenha, que no Brasil fez o 25 de julho se tornar data cívica em celebração à Tereza de Benguela, legendária liderança do Quilombo do Piolho, localizado no atual estado de Mato Grosso, no século 18.
Ainda que se visse obrigado a permanecer na presença de Maria Inês Barbosa, ele não possui repertório para suportar o que viria depois de uma saudação que começou assim
"Saúdo àquelas e aqueles inviabilizadas(os)(es), vozes emudecidas sem cuja existência não existiríamos: presentes; limpam, cozinham, servem, sofrem, riem, choram, estão nos becos e vielas, de balas perdidas que encontram corpos negros, estão nas periferias, nos centros, nas aldeias, na vida urbana, rural, nas palafitas, mulheres violadas, subjugadas, aviltadas, em distintas identidades de gênero, pelo jugo do patriarcado, migrantes, àquelas(es) que sequer imaginam que delas(es) falamos, presentes... Somos Negras, Negros, Negres, Indígenas, Ciganas(os)(es), Brancas(os), Branques, LBTGQIAPN+, Pessoas com deficiência; enfim a plenitude da diversidade de existências, em contextos políticos, econômicos, culturais, que valorizam ou negam a vida.
Há muitas décadas, Maria Inês tem falado sobre o "projeto político emancipatório necessário para a consolidação do direito à saúde" neste país fundado em violências que se mantém como pilares.
"A ela que acompanha os vários ataques à saúde importa que se promova a "reconquista das diretrizes e princípios do SUS em um novo eixo contraditório de articulações: saúde como processo de acumulação e reprodução do capital; saúde e desenvolvimento científico e tecnológico; saúde e democratização do seu acesso como direito
"Em momentos como este, em que um agressor escancara práticas da chamada necropolítica, temos a tendência de dizer que não comungamos de sua truculência e ódio.
"Nesse sentido, deixo aqui uma provocação para que sejamos capazes de irmos além dessa aversão ingênua: Até que ponto nós que colocamos a democracia em tão alto conta, temos sido capazes de ouvir as Marias Inês que estão dizendo e fazendo coisas imprescindíveis para o bem de todas, todes e todos".
Segue a nota oficial do Governo Federal, por meio Conselho Nacional de Saúde (CNS):
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) vem a público manifestar total solidariedade à professora Maria Inês da Silva Barbosa, pioneira nos estudos sobre a saúde da população negra no país.
Mestre em Serviço Social e doutora em Saúde Pública, a pesquisadora foi vítima de desrespeito e cerceamento durante a 15ª Conferência Municipal de Saúde de Cuiabá (MT), nesta quarta-feira (30/07).
O SUS é fruto de décadas de luta por uma saúde pública universal, integral e equânime, construída com a participação social, princípio basilar da democracia brasileira. As conferências de saúde são espaços históricos de diálogo, onde a diversidade de vozes deve ser não apenas respeitada, mas celebrada, pois reflete o compromisso com a equidade e a inclusão.
O objetivo das Conferências é melhorar a saúde de toda a população, e uma das ferramentas mais assertivas para isso é justamente incluir, ouvir e considerar as pessoas na construção de políticas públicas de saúde.
A tentativa de silenciar a professora Maria Inês, sob o pretexto de "doutrinação ideológica", fere os valores do SUS e a própria Constituição Federal, que garante a saúde como direito de todas as pessoas, sem exclusões, sem discriminação, sem racismo.
Tamanha atitude autoritária, desferida por um representante democraticamente escolhido pelo povo, revela um profundo desconhecimento sobre o papel do SUS e da participação social como instrumento democrático. Instrumento, aliás, tão democrático quanto o poder do voto que elege prefeitos municipais.
O SUS não é de um governo ou de uma gestão: é do povo brasileiro, e sua força está justamente na capacidade de acolher as diferenças e combater todas as formas de discriminação e racismo, pois isso também é fazer saúde.
O CNS repudia veementemente qualquer tentativa de coibir debates ou impor censuras em espaços públicos de deliberação. Tamanha interferência neste processo democrático, destinado a debater e construir políticas públicas de saúde voltadas para todas, todos e todes, é um ataque à autonomia dos conselhos e à sociedade civil organizada, que há décadas fortalece o SUS contra retrocessos.
O SUS é do Brasil. O SUS é de todas as pessoas.
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