Sindicato pede "mutirão judicial" por causa de superendividamento

Sindicato pede CSB

A crise dos empréstimos consignados ganhou um novo e potencial requisito de endurecimento ainda maior, na relação entre os poderes constituídos e os servidores públicos do Poder Executivo de Mato Grosso.

O Sindicato dos Profissionais da Área Instrumental do Governo de Mato Grosso (Sinpaig/MT) acionou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell - que, recentemente, acompanhou pessoalmente uma inspeção do conselho no Tribunal de Justiça de Mato Grosso - cobrando medidas urgentes para o enfrentamento do superedividamento dos servidores públicos de Mato Grosso e de acesso à Justiça.

Na ação, o sindicato reafirmou que os servidores têm encontrado dificuldades em movimentar processos judiciais de superendividamento, como assegura a legislação vigente desde 2021.

"Todos os avanços conquistados após a CPI dos Consignados em 2018, que se transformou em realidade com a Lei 11.033/2019, promulgada pela Assembleia Legislativa diante da omissão do Governo do Estado, não foram cumpridos. E pior, foram desprezados e executados, ao contrário das irregularidades apontadas nas investigações", lembra Antônio Wagner, presidente do Sinpaig.T.

Ele relata ainda que, em 2018, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso instalou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Consignados, com o objetivo de apurar denúncias de irregularidades na operacionalização dos empréstimos consignados, uma vez que 62.867 dos 105 mil servidores ativos, inativos e pensionistas do Executivo possuíam empréstimos consignados, totalizando uma divida de aproximadamente R$ 2 bilhões.

Isso representava, a época, uma dívida per capita de cerca de R$ 19 mil por servidores com operações consignadas.

O sindicato responsabiliza ainda o Poder Judiciário, que, ao contrário da lei de superendividamento, tem criado dificuldades e atropelos aos servidores, inclusive, com o acolhimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), apresentada pelo governador Mauro Mendes, em 2020, quando declarou que, por mero vício de iniciativa, a Lei 11.033/2019 foi considerada inconstitucional. Passados cinco anos desta decisão, o Governo de Mato Grosso, por meio da Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag), sob o comando de Basílio Bezerra Guimarães, manteve as operações, mas reguladas por frágeis decretos governamentais.

"O governador Mauro Mendes declarar que o Governo do Estado não tem responsabilidade nas negociações entre os servidores e os agentes financeiros é de uma desfaçatez em precedentes", apontou o ex-procurador da República, ex-senador e ex-governador Pedro Taques, que patrocina a defesa de seis sindicatos representativos do funcionalismo público e da Federação dos Servidores de Mato Grosso (Fessp/MT).

Na CPI, restaram comprovadas práticas abusivas e a falta de transparência, vez que havia ofertas irresponsáveis de crédito, pois os bancos e correspondentes bancários assediavam servidores por telefone, oferecendo crédito pré-aprovado. E, por vezes, depositando valores em conta sem solicitação formal, induzindo o servidor ao erro.

Um exemplo é o oferecimento de Cartão de Crédito Consignado, identificado como o "maior câncer do consignado", pois os servidores acreditavam contratar um empréstimo com parcelas fixas, mas recebiam um cartão de crédito com juros rotativos elevados e prazo de quitação indeterminado.

Além disso, embora o consignado fosse a modalidade de créditos mais barato, os juros de cartão de crédito consignado eram estratosféricos, com dividas que se multiplicavam, com os servidores pagando duas, três ou até quatro vezes o valor originalmente emprestado.

Os servidores enfrentavam grandes obstáculos para obter cópias de contratos, extratos de saldo devedor e informações claras sobre juros e parcelas, dificultando a quitação antecipada ou a renegociação.

O relatório final, publicado em novembro de 2018, revelou um cenário alarmante de superendividamento dos servidores públicos, e assim foram sugeridas algumas recomendações a serem efetivadas pelo Poder Executivo, que não o fez nos últimos sete anos.

O Poder Executivo não apenas ignorou as recomendações do Legislativo, como também editou normas que agravaram a situação financeira do servidor público de Mato Grosso.

Mas, as alterações proposta por decreto no Governo Mauro Mendes trouxeram mudanças significativas na saúde financeira e mental do servidor e suas famílias, pois descumpriram as recomendações da CPI de 2018 e fizeram um caminho divergente das recomendações consideradas cruciais para corrigir o então quadro da época que eram:

* Proibição do Cartão de Crédito Consignado;

* Criação de regramento geral dos consignados por lei (não por decreto);

* Garantir que a contribuição ao Fundo de Desenvolvimento do Servidor Público (Fundesp) seja paga pelos bancos, sem repasse ao servidor a fim de garantir a isenção do Banco do Brasil;

* Instituição do Ranking de Juros e Custo Efetivo Total (CET) dos consignados;

* Obrigatoriedade de posto de atendimento presencial no Estado para a administradora e consignatárias;

* Promoção de ações de educação financeira pelos bancos;

* Definição do termo Superendividamento no ordenamento jurídico estadual;

* Limitação do numero de parcelas para empréstimos consignados.

Hoje, o Estado de Mato Grosso enfrenta uma crise sem precedentes no que se refere ao superendividamento de seus servidores públicos, em cenário semelhante ao de 2018, o que comprova que o descontrole e superendividamento decorre da falta de regras mais claras e da leniência do Poder Executivo.

Cerca de 62 mil servidores do Executivo possuem ao menos cinco contratos de crédito consignado ativos. O valor total dessas operações ultrapassa os R$ 4,6 bilhões nos últimos três anos, sendo R$ 1,7 bilhão apenas entre maio de 2024 e abril de 2025. 

Mais de 20 mil servidores comprometem mais de 35% da renda com as dívidas consignadas, e 7,8 mil ultrapassam o limite de 70%.

Há casos de servidores com descontos consignados que consomem até 90% da remuneração mensal, o que os impede de manter o mínimo existencial garantido pelo ordenamento jurídico brasileiro (art. 6º da CF/88 e arts. 54-A e 104-A, §1º, do CDC).

A Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso (DPEMT) realizou, em apenas cinco dias, 338 atendimentos voltados aos servidores públicos com problemas de superendividamento com empréstimos consignados

As investigações em curso têm revelado práticas sistemáticas de: 

* Desvirtuamento da modalidade de cartão de crédito consignado; 

* Negativa de fornecimento de contratos aos mutuários; 

* Quando fornecidas CCBs (Cédulas de Crédito Bancária), identificou-se tratar de documentos sem validade jurídica, uma vez que não se pode comprovar a autenticidade da assinatura do mutuário; 

* Prática ilegal e não autorizada pelo Decreto 691/2016 de compra de dívida;

* Fraudes na manipulação de valores; 

* Descumprimento de normas do Banco Central;

* Crime contra a economia popular e estelionato;

* Possível conluio entre empresas consignatárias.

O Sinpaig/MT alertou ainda para o congestionamento judicial, morosidade e do acesso à Justiça, pois, nos últimos anos, tem se tornado recorrente a interposição de ações judiciais pelas quais se busca a revisão, nulidade ou readequação de contratos de empréstimo consignado, diante de graves indícios de fraude, irregularidades contratuais e violação aos direitos dos consumidores, especialmente os servidores públicos do Estaduais.

Ocorre que, apesar da robustez dos elementos probatórios acostados às iniciais, bem como das minuciosas exposições fáticas e jurídicas trazidas pelos patronos dos autores, tem-se verificado, com elevada frequência, que as varas especializadas em matéria bancária do Estado de Mato Grosso não vêm observando, com a devida atenção, as peculiaridades das causas, proferindo decisões genéricas, sem enfrentamento das teses apresentadas.

Dentre os pontos mais sensíveis que vêm sendo reiteradamente desconsiderados, destacam-se:

a) A divergência entre a modalidade contratada e a modalidade averbada no portal do servidor público, em que se verifica, com frequência, a contratação de cartão de crédito consignado com margem rotativa, disfarçada sob a aparência de empréstimo consignado tradicional, culminando em descontos excessivos e abusivos em folha de pagamento;

b) Existe irregularidades e divergências entre o número do Contrato informado junto ao portal do consignado e o número da Cédula de Crédito Bancário (CCB) apresentada, uma vez que tal numeração não coincidem;

c) Também foi constado inúmeras averbações em uma única linha de crédito. Ou seja, averba-se diversos contratos na mesma linha de crédito majorando os valores mensais descontados, porém são contratos onde os valores mensais, taxa de juros e vencimentos são distintos, impossibilitando o controle;

d) A ausência de análise efetiva quanto à validade da Cédula de Crédito Bancário (CCB), instrumento contratual muitas vezes apresentado de forma unilateral e sem a necessária prova de ciência ou anuência válida do servidor contratante, seja por ausência de assinatura digital validada, seja por descompasso entre os valores pactuados e os efetivamente liberados;

e) A dificuldade sistemática na concessão da gratuidade de justiça, mesmo diante da juntada de documentos que evidenciam a hipossuficiência financeira do servidor público, cujos vencimentos líquidos, por vezes, encontram-se inteiramente comprometidos pelos descontos em folha, restando, assim, vedado o pleno acesso à jurisdição, em ofensa direta ao art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal. A Lei nº 14.181/2021, conhecida como o Marco Legal do Superendividamento, foi concebida como instrumento de proteção e amparo célere ao consumidor em situação de vulnerabilidade econômica.

Dentre suas inovações, destaca-se a previsão de audiência conciliatória global, com todos os credores, para possibilitar a repactuação de dívidas e a reconstrução da dignidade financeira da pessoa superendividada (art. 104-A e seguintes do CDC).

No entanto, no Estado de Mato Grosso, a aplicação dessa lei tem se mostrado ineficaz frente à morosidade do Poder Judiciário, que, em vez de ser um agente ativo na efetivação da política nacional de prevenção e tratamento do superendividamento, tem se tornado um entrave adicional ao agravamento da crise.

Os servidores públicos estaduais — muitos com mais de 90% de sua renda líquida comprometida com empréstimos consignados — têm encontrado extrema dificuldade em obter respostas judiciais em tempo razoável.

A lentidão na tramitação dos processos os mantém presos a uma espiral de dívidas, sem qualquer alívio judicial ou perspectiva concreta de repactuação. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que, em abril de 2025, a taxa de congestionamento bruta dos processos de superendividamento no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) atingiu 78,49%, enquanto o índice de atendimento à demanda foi de apenas 41,41%.

"Esse cenário evidencia desafios significativos na celeridade dos procedimentos judiciais, o que pode impactar diretamente o acesso efetivo à Justiça e a busca por soluções para a vulnerabilidade financeira enfrentada por servidores públicos. Mais grave ainda, diante das inúmeras denúncias e investigações de fraudes cometidas por consignatárias e instituições financeiras, que são objeto de apuração pelo Ministério Público Estadual e Federal, Defensoria Pública, Tribunal de Contas e Assembleia Legislativa, é razoável supor que o volume de ações relacionadas ao superendividamento tende a crescer — o que poderá aumentar ainda mais a sobrecarga do Judiciário, caso não sejam adotadas medidas urgentes", alertou Antônio Wagner.

O sindicalista observa que, adicionalmente, cumpre destacar a preocupante ocorrência de decisões judiciais conflitantes no âmbito do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), inclusive com casos de extinção de processos de repactuação de dívidas promovidos por servidores públicos que preenchem todos os requisitos legais de superendividamento previstos na Lei nº 14.181/2021.

Tal cenário agrava ainda mais a vulnerabilidade social e econômica desses trabalhadores, que buscam justamente o amparo da Justiça para recuperar sua dignidade financeira. É fundamental lembrar que a referida Lei, em seu art. 104-B, § 3º, prevê expressamente que: “O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.”

A aplicação célere e uniforme desse dispositivo pode ser decisiva para assegurar a efetividade dos direitos dos superendividados.

A ausência de critérios claros e de orientação judicial unificada compromete o acesso à justiça e perpetua a situação de inadimplência extrema que atinge milhares de servidores públicos estaduais.

A locução "Acesso à Justiça", embora complexa em sua conceituação, transcende a mera possibilidade de ingresso ao Poder Judiciário. Sua compreensão deve ser ampliada para englobar três vias interdependentes e complementares, essenciais para a pacificação social e a realização da justiça:

1. Via dos Meios Alternativos de Solução de Conflitos (MASCs): A autocomposição (conciliação, mediação e negociação) e a heterocomposição (arbitragem) representam mecanismos cruciais para a desjudicialização e a solução célere e consensual de litígios. O CPC/2015, em seu art. 3º, § 3º, acertadamente estimula esses métodos, reconhecendo sua capacidade de promover a pacificação social de forma mais ágil e menos onerosa para os cidadãos e para o próprio Estado.

2. Via Jurisdicional (Jurisdição Estatal): O acesso ao Poder Judiciário permanece indispensável para a proteção de direitos, especialmente em casos de "jurisdição necessária", onde valores fundamentais e essenciais da sociedade exigem a intervenção estatal para a justa composição do conflito. Contudo, a efetividade desse acesso depende de um "justo processo", que garanta não apenas a forma, mas também a equidade e a obtenção de resultados individual e socialmente justos, conforme a visão de Mauro Cappelletti.

3. Via das Políticas Públicas: O Acesso à Justiça também se concretiza por meio da implementação efetiva de políticas públicas que eliminem barreiras e garantam que o cidadão, em especial o hipossuficiente, tenha pleno conhecimento e condições de exercer seus direitos.

A Defensoria Pública, por exemplo, é uma instituição fundamental nesse contexto, cuja plena implementação é vital para assegurar a assistência jurídica integral e gratuita, conforme o art. 5º, inciso LXXIV, e o art. 134 da Constituição Federal. É imperativo reconhecer que a perspectiva do "consumidor" do sistema jurídico – ou seja, do cidadão – deve ser o cerne de toda a reflexão sobre o Acesso à Justiça, tal qual defendido por Kazuo Watanabe.

Isso implica uma nova postura mental, que priorize a equidade e o bem-estar coletivo em detrimento de uma ética puramente focada na eficiência técnica ou nos interesses temporários do Estado. Apesar dos avanços normativos, diversos obstáculos ainda impedem a plena efetivação do acesso à Justiça, com destaque para os custos do processo, e em alguns casos, a má formação dos operadores do Direito.

"A morosidade, em particular, constitui uma grave negação do próprio princípio, transformando a garantia constitucional em uma promessa vã. Reconhecemos o compromisso do CNJ com a eficiência e a modernização do Poder Judiciário e, nesse espírito, apresentamos nossas considerações técnicas e conceituais que visam fortalecer a prestação jurisdicional e os demais caminhos para a resolução de conflitos", afirmou.

Antônio Wagner, ao concluir sua solicitação ao corregedor-geral de Justiça, ministro Mauro Campbell requereu:

1. Que durante a inspeção ao TJMT, seja incluída verificação específica da tramitação das ações de superendividamento nas varas bancárias, com ênfase nos altos índices de congestionamento e na ausência de mutirões ou soluções emergenciais;

2. Que o CNJ promova mutirão nacional ou determine ao TJMT a realização imediata de esforço concentrado para julgar os processos de superendividamento envolvendo servidores públicos do Estado;

3. Que seja analisada a uniformidade das decisões proferidas em casos de superendividamento, verificando-se a existência de decisões divergentes ou extinções indevidas de processos que atendem aos requisitos da Lei nº 14.181/2021;

4. Que seja recomendado a concessão da Justiça Gratuita aos servidores públicos estaduais com processos de suspeitas de fraude na contratação dos empréstimos e cartões de crédito.

"Ao adotar uma perspectiva holística do Acesso à Justiça, que transcende os limites do processo judicial tradicional e abraça a diversidade de mecanismos de resolução de conflitos, o CNJ reafirmará seu compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e equitativa. Nos colocamos à disposição para quaisquer esclarecimentos e para colaborar na construção de um sistema de justiça mais acessível, eficiente e justo para todos os cidadãos brasileiros", completou o presidente do Sinpaig.