DISTORÇÃO BRASILEIRA: Falta de verba para passaportes repercutiu mais que o fim de recursos para a merenda escolar e remédios na Farmácia Popular

DISTORÇÃO BRASILEIRA: Falta de verba para passaportes repercutiu mais que o fim de recursos para a merenda escolar e remédios na Farmácia Popular
GILBERTO MENEZES CÔRTES / JB Paulo Guedes já percebeu que seu tempo acabou e que não vale a pena nem há legitimidade para ações radicais. Se Bolsonaro tivesse sido reeleito, após queimar todos os cartuchos no estouro de gastos e abuso da máquina burocrática do Estado para tentar reeleger o chefe, já no dia 1º de novembro o ministro da Economia estaria negociando com o atual Congresso para ganhar espaço fiscal para acomodar os gastos previstos com o pagamento de R$ 600 no Auxílio Brasil (o orçamento de 2023 enviado ao Congresso só previa R$ 405), além do salário mínimo de R$ 1.400. Como deu Lula, só cabe ao ex-presidente nomear um batalhão para levantar, na equipe de transição, a realidade deixada pelo governo em fim de mandato, para ver a possibilidade política e econômico-financeira de desenhar os projetos de edificação do novo governo que toma posse em janeiro O velho já morreu; o novo não nasceu O grande pensador e jornalista italiano Antônio Gramsci, entre muitas de suas colocações filosóficas e frases lapidares, criou uma que se aplica perfeitamente ao momento de transição brasileiro, no qual o governo Bolsonaro, derrotado nas urnas pelo ex-presidente Lula, resiste a abdicar do poder da caneta nos menos de 50 dias que lhe restam, insufla os apoiadores a pedir "intervenção federal" que prolongasse "ad infinitum" o seu desgoverno, qual os portugueses que ficaram décadas esperando a volta do jovem rei D. Sebastião, morto na batalha de Alcácer Kibir, no Marrocos - e vem fazendo nomeações em profusão, que podem comprometer, sobretudo nas agências reguladoras e postos diplomáticos, a atuação do futuro governo. E o futuro governo, ainda às voltas para levantar, na equipe de transição, a real situação da máquina pública deixada por Jair Bolsonaro, que raspou os cofres para turbinar sua reeleição, e deixou muitos setores à míngua, ainda não pode começar a agir, sem saber quanto espaço fiscal terá para operar a partir de 1º de janeiro de 2023. É incrível que a falta de R$ 37,3 milhões para a Polícia Federal produzir passaportes tenha gerado mais repercussão que o fim de recursos para a merenda escolar e de remédios na Farmácia Popular... A dicotomia deste contraste explica bem por que o Brasil mais pobre e desassistido nos quatro anos do governo de Jair Messias Bolsonaro, cuja preferência pela liberação de armas produziu mais uma tragédia neste fim de ano (no Espírito Santo, um adolescente de 16 anos, filho de um tenente da PM, usando roupas camufladas e armas pesadas, invadiu dois colégios em Aracruz e matou três pessoas, sendo duas professoras, ferindo outras 13 pessoas, entre estudantes e funcionários), resolveu votar em Lula. O episódio resume o desastre do Brasil nos quatro anos de Bolsonaro: a cultura do ódio, a apologia das armas e da morte e o desprezo pela educação, a cultura e a arte (que era o "metier" de uma das primeiras professoras assassinadas) resistem e não dão espaço ao novo. A frase famosa de Gramsci para resumir a crise (no sentido em que os chineses classificam como ponto de partida para oportunidades - os anagramas são quase idênticos) diz: "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem". Por enquanto só estamos colhendo os sintomas mórbidos, sem poder saborear e desfrutar das promessas de esperança que elegeram Lula. As promessas de campanha de Lula foram claras nas prioridades para com o povo mais esquecido, na volta do Bolsa Família, na recuperação da Educação, da Saúde, e da proteção social. Lembro de uma resposta do ex-presidente ao candidato do Novo, Felipe D'Ávila, no debate da Globo no 1º turno. O milionário paulista, defensor do liberalismo, se disse contrário às cotas raciais nas universidades e favorável a um sistema de cotas por nível de renda ou pobreza. Um Lula incomodado com a falta de sensibilidade social do fundador do Centro de Liderança Pública fulminou-o na resposta: "Você não entende o que são 350 anos de injustiça social com a escravidão do povo negro". Embora não seja um expoente do mercado financeiro, mas um representante do pensamento dos agentes que atuam neste mercado, a falta de sensibilidade com o passado e as mazelas sociais fica explícita na pressão do pessoal do mercado para que Lula antecipasse - já na campanha - as diretrizes na área econômica, em especial com a antecipação do nome do futuro ministro que vai comandar a área econômica (com a volta das pastas da Fazenda, do Planejamento e Gestão e da Indústria. Comércio e Comércio Exterior, hoje enfeixados no Ministério da Economia, de Paulo Guedes). Depois de eleito, a pressão só faz aumentar. O mercado financeiro não deve ser muito afeito às leituras de Gramsci, um pensador marxista, mas por operar no horizonte futuro, na administração de expectativas na formação das carteiras de títulos de renda fixa, moedas, commodities e ações, entre outros ativos, os empresários e os operadores do mercado financeiro ficam mais ansiosos com o interregno em que estamos vivendo. Paulo Guedes já percebeu que seu tempo acabou e que não vale a pena nem há legitimidade para ações radicais. Se Bolsonaro tivesse sido reeleito, após queimar todos os cartuchos no estouro de gastos e abuso da máquina burocrática do Estado para tentar reeleger o chefe, já no dia 1º de novembro, o ministro da Economia estaria negociando com o atual Congresso para ganhar espaço fiscal para acomodar os gastos previstos com o pagamento de R$ 600 no Auxílio Brasil (o orçamento de 2023 enviado ao Congresso só previa R$ 405), além do salário mínimo de R$ 1.400. Como deu Lula, só cabe ao ex-presidente nomear um batalhão para levantar, na equipe de transição, a realidade deixada pelo governo em fim de mandato para ver a possibilidade política e econômico-financeira de desenhar os projetos de edificação do novo governo que toma posse em janeiro. A escolha do mercado financeiro pela continuidade de Bolsonaro tinha muito a ver com a não reversão de expectativas. As apostas feitas nas diversas carteiras teriam pequenas correções de rumo, mas as negociações com a equipe de Paulo Guedes já tinham canais pré-estabelecidos e em operação. Lula ficou com o ônus de alimentar expectativas. Mas ainda que nomeasse todo o ministério esta semana, não teria mais facilidade para avançar na negociação que importa: qual o cacife que terá para operar em 2023? Lula queria que a PEC da transição contemplasse liberdade para pagar o Bolsa Família (que volta no lugar do AB), com a inclusão de mais R$ 150 por filho menor de seis anos que cursasse a escola e estivesse com carteira de vacinação em dia (mudanças importantes em relação ao descaso de Bolsonaro com a educação e a saúde dos mais pobres). Setores do Congresso (onde Bolsonaro já tinha forte base, ampliada no 1º turno deste ano) não querem dar cheque em branco para liberar os gastos do BF fora do OGU por todo o mandato. O mais provável (e sensato) é que se estenda até 2024, com negociações anuais, quando da apresentação da PLOA de cada ano.